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Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Já passaram cinco semanas

C(o)rónicas de Quarentena #4

M., 17.04.20

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Lembram-se quando vos contei aqui que estava em casa há duas semanas? 

Já se passaram cinco. Podia dizer-vos que estou transformada numa pessoa melhor e que estou altamente produtiva e criativa. Afinal não é isso que as frases bonitas que vemos por aí pregam todos os dias? Eu adoro ser positiva e esperançosa mas antes disso gosto de ser verdadeira e não tenho acordado todas as manhãs a sentir-me espetacular, não senhora. 

Vamos aos updates.

Toda a rotina de desinfectar está mais fácil, mais automática. É que para além das minhas mãozinhas, tenho 4 patas caninas para limpar várias vezes ao dia. Ou seja, cada vez que entro em casa, preciso de desinfectar imediatamente não duas, mas seis patas. O meu cão, apesar de continuar com um ar muito confuso, lá vai colaborando.

Ir ao supermercado, apesar de continuar a ser um filme, é a coisa mais próxima de uma vida normal fora de casa que tenho, por isso já tolero melhor. Quase me atrevo a dizer que gosto.

Aprendi a desligar da maioria das notícias e principalmente dos números. Sabem que em Portugal morrem por mês 400 pessoas com pneumonia? Pois. A falta de conteúdo e excesso de alarmismo faz com que fiquemos impressionados com números que já existiam antes desta pandemia. Pesquisem sobre isto e garanto-vos que vão ficar supreendidos. Não estou a desvalorizar a situação, só que pessoalmente dispenso ser bombardeada com isto a toda a hora, os primeiros 10 minutos do telejornal da noite são suficientes para me manter informada.

Tenho meditado e sinto-me tranquila, de um modo geral. Não significa que consiga ver uma temporada de Casa de Papel de enfiada (vi em 4 dias). Continuo a ter bicho carpinteiro que me impede de fazer longas maratonas em frente a um ecrã.

Conquistas? Também há!

Tenho cozinhado mais. Já fiz um bolo tão bom que foi dividido em pequenos quadradinhos para durar o máximo possível. Ainda durou uma semana, palmas para mim!

Estou a gostar mais de plantas. Pouco ou nada ligava às que tenho na minha varanda, mas agora começo a apreciar e gosto de acompanhar o seu crescimento. Tenho um vaso de orquídeas que estão quase, quase a nascer e é mesmo giro ver a evolução diária.

Voltei a pegar na minha velha amiga guitarra, de quem tinha milhões de saudades. Toquei até ficar com calos nos dedos da mão esquerda (entendedores entenderão).

Li mais um livro em inglês, algo que queria fazer com mais frequência este ano. Talvez escreva sobre ele, em breve.

Tenho pairado aqui pelo Letra Éme mais vezes que nos últimos seis meses. 

Agora, as partes menos boas...

Abril é o meu mês. É o mês dos aniversários, das festas, das surpresas, do convívio com as pessoas. Por isso custa estar longe, claro que custa, era mau sinal se não custasse.

Sinto que as videochamadas são sempre curtas demais, tenho saudades de falar com as pessoas sem horas marcadas e sem perguntar 39 vezes se me vêem/ouvem bem. Enfim. Todos fazemos o nosso possível e fico feliz por continuar a ter quem ature as minhas parvoíces dia após dia, semana após semana.

Não é possível estarmos super felizes e produtivos a toda a hora. Haverá momentos em que um mês parecem dez e parece que nada acontece. Haverá momentos em que somos assombrados pela impotência do agora e pela incerteza do futuro. Gosto de pensar que enquanto houver aspetos positivos a somar à equação, valerá tudo a pena, mas há dias em que é verdadeiramente difícil e assustador.

Identificam-se com alguma destas coisas? Como está a ser, desse lado?

Desejo-vos a continuação de uma quarentena o mais sã possível, com todos os altos e todos baixos, porque é importante aceitarmos esta dualidade. Obrigada também a quem tem vindo aqui deixar os seus comentários, são sempre bem-vindos!

Crochet pandémico

C(o)rónicas de Quarentena #3

M., 14.04.20

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A minha mãe decidiu que queria fazer crochet. 

Já não fazia há muito tempo, tem saudades de algo que não a obrigue a ficar agarrada a um ecrã (como a compreendo!) e, vai na volta, começou a remexer em tudo quanto são caixas e caixinhas, à procura do material. Encontrou as agulhas e um pequeno novelo branco. À partida servia para treinar.

Acontece que a minha mãe é uma pessoa extremamente jeitosa em tudo o que envolve trabalhos manuais, o que me faz questionar se serei adotada, porque tal jeitinho não chegou aqui a estes genes. Portanto, rapidamente começou a esgotar as coisas que podia fazer só com um novelo branco e queria mais. Mais cores, mais diversidade, mais opções.

Foi então que começou a pedir-me para lhe comprar novelos de lã. Eu no primeiro dia nem liguei, respondi algo do género "sim, está bem, vou já a correr comprar-te novelos de lã no meio desta pandemia". No dia seguinte, a mesma conversa. "Mãe, está tudo fechado" informava eu. Ela não insistia mais e continuavavamos ambas o que estavamos a fazer. Mas isto estava longe de acabar. No dia a seguir, voltou a pedir-me e eu voltei a explicar que como as lojas estão fechadas, o melhor era comprar online. Recebi um encolher de ombros em troca. Só que não era uma desistência. Porque, segundo ela, de certeza que na loja chinesa havia. "Há aquela mercearia chinesa que vende fruta e legumes e lá ao fundo tem coisas para a casa, lá de certeza que consegues comprar, vá lá, vai-me lá comprar que eu estou cheia de vontade de fazer isto".

Pronto. Foi a gota de água. Peguei nela e fomos as duas dar uma volta de carro aqui pelo bairro, para que a Teimosa Mor cá de casa pudesse ver e acreditar que quando afirmo que está tudo fechado, não estou mesmo a exagerar. Avistavam-se pessoas nas filas para as mercearias e farmácias. De resto, tudo fechado, como eu andava há dias a tentar explicar. É triste. Para quem não punha os pés na rua há várias semanas, foi um choque grande. Tentei remediar a situação oferecendo-me para a ajudar a pesquisar online e encomendar.

Meus amigos, o que eu não sabia é que há todo um Universo do Crochet! Uma pessoa entra num site, e aparecem 53 nomes, que agora percebi que são marcas, para que possamos escolher. Esqueçam lá definições de lã fininha ou grossa, vocês têm de decidir é entre a Katia, a Nikita, a Merinho, a Charminho... o que é isto? Eu não quero adotar caniches, quero só comprar novelos de lã...!

Pior do que este primeiro embate, foi depois ver o preço de cada "caganita" de 50 gramas. Pois que a senhora minha mãe continuava a teimar que no chinês é muito mais barato. "Podes sempre mandar vir da China, daqui a um mês, com sorte, devem chegar" rematei.

Resumindo e baralhando: continuamos sem novelos nem perspetivas de os ter porque 1) as lojas estão fechadas, 2) as encomendas demoram muito tempo a chegar, 3) as que chegam em tempo razoável são demasiado caras e 4) uma pessoa que é leiga no assunto tem medo de arriscar e deitar dinheiro ao lixo.

De modo que estou de mãos e pés atados com fios de lã invisíveis.

Caramba... Nunca pensei que uma atividade tão adorável como o crochet me desse estas dores de cabeça!

Devíamos ser mais como os peixes

M., 10.04.20

Em tempos de quarentena, quero partilhar um belíssimo excerto de um dos últimos livros que li: a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe.

Valter Hugo Mãe é um dos meus escritores favoritos já há alguns anos, pela forma realisticamente poética como se expressa sobre aquilo que é a vida, o amor e o sofrimento. Neste livro, conhecemos o senhor Silva que depois de ficar viúvo, aos 84 anos, vai viver para um lar. Durante este período, para além de pensar na sua vida e de fazer novas amizades, passa por alguns momentos introspetivos, como é natural. Houve um destes momentos que me marcou particularmente e que não podia ser mais apropriado para a situação que estamos todos a viver:

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"sabes que os peixes têm uma memória de segundos. aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de uns segundos, três segundos, assim. é por isso que não ficam loucos por dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma exploração fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes, a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação."

Fabuloso, não é?

Cada dia que passa dá-nos a oportunidade de encarar tudo de uma forma diferente, nova, inesperada se quisermos. Isto significa que temos também oportunidade de nos deixarmos deslumbrar com coisas simples às quais deixamos de dar importância na nossa correria habitual. Como aquela plantinha que temos há semanas e que finalmente está a crescer ou aquela receita da nossa avó que saiu perfeita.

E a felicidade de partilhar estas vivências tão simples com os nossos amigos e família, como se fosse algo novo e absolutamente excitante?

Ao princípio tive medo que as conversas ficassem desinteressantes (ai, ai, Mariana... como se aquilo que nos dá interesse fossem as coisas lá fora!). Custa-me um bocado admitir isto, porque é um perfeito disparate. O que nos torna interessantes é o que cultivamos "aqui" dentro e a nossa capacidade de nos reinventarmos, de nos adaptarmos às circunstâncias. É certo que há várias maneiras de viver esta fase, podemos escolher ficar a vegetar e a fazer sempre o mesmo, ou podemos escolher ser como os peixes.

É importante sermos como os peixes e agradecer a sorte que temos, mesmo quando estamos confinados aos nossos "aquários". São estes aquários que nos protegem e que nos permitem continuar a viver, ainda que de uma forma diferente.

Por isso, queridas pessoas: aproveitem este tempo, deixem-se surpreender, usem e abusem dessa criatividade e, claro, leiam muito!