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Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Long time no see, Mr. G.

M., 27.02.21

Houve um ano em que a vida maltratou Mr.G., várias vezes, antes de Mr. G. começar a maltratar-se a si próprio, ao ponto de abandonar as suas histórias.

Mr. G. foi forçado a viver com mais amargura, mesmo quando algo de bom acontecia. Não havia maneira de fugir, nem de esquecer. Os infortúnios da vida tinham vindo para ficar e nada do que fizesse conseguia dissipá-los, era preciso aprender a viver com eles. Não era uma questão de tempo, ou era, se pensarmos que seria assim até ao fim do tempo. Mr. G. sabia que a felicidade pura, esse estado, essa sensação, esse quase-milagre, nunca mais iria voltar. Pode ser feliz ainda, sem dúvida que sim, mas... faltam-lhe as suas pessoas mais queridas. Nunca mais iria vivenciar a felicidade na sua forma pura. Partiram demasiado cedo e Mr. G. sentiu-se só, muito só. Mesmo quem estava mais longe o fez sentir só. Esqueceu-se daquilo que era. Deixou de sentir. Mais grave de tudo: esqueceu-se que era um contador de histórias. Bem sabemos que quem não consegue sentir, tão pouco consegue contar histórias.

Nesse ano de número amaldiçoado, Mr. G. teve prazeres que provavelmente não saboreou da melhor maneira (como poderia? quanto tempo demora até alguém deixar de se sentir culpado pela sua alegria, depois da tristeza?). Mas Mr. G. não deixou de ir. Andou de comboio e de avião, viu casas bonitas, prédios impressionantes e pessoas. Muitas, tantas personagens possíveis que podiam ter nascido ali e acolá. Ele próprio foi o seu personagem, em diversas situações. Podia ser uma mão cheia de criações, não fossem tão escassos os picos de inspiração. Mr. G. tinha a capacidade de ser a sua própria inspiração. Às vezes não precisava de mais nada para além dele mesmo. Num sítio qualquer, com uma vista qualquer, vestido de uma forma qualquer. Depois, viria um cheiro, um som, algo que lhe despertava ideias, aquele diálogo mental que lhe alimenta a alma e que silenciava cada vez mais.

Histórias. É difícil prever o momento certo para as contar. Todavia, um contador de histórias não se esquece assim tão facilmente. Felizmente, é o caso de Mr. G., pois ainda ontem lhe veio à memória a rapariga francesa com brincos de prata que acredita em contos de fadas. Lembrou-se também dos três truques que a senhora de meia idade com chapéu de pescador lhe segredou no jardim das rosas.

Aquele maldito ano finalmente deu lugar a um novo. Mr. G. ainda vive, ainda que com mazelas, e voltou a lembrar-se de como é bom contar histórias.

Contra todos os restos

M., 21.02.21

De todas as crueldades e injustiças do mundo, havia algo que tirava a pequena Natália do sério: os restos que ficavam nas chávenas, nos copos, nas canecas, nas tigelas, nos pratos, enfim. Por que razão as pessoas deixavam escassos mililitros ou migalhas para trás, era algo que lhe custava verdadeiramente entender.

A avó Lucinda sempre lhe ensinara que era feio deixar restos, fosse do que fosse. Era preferível pedir pouco e repetir, se necessário. Em sua casa, a rotina de servir alguém era prazerosa. Não era só comida ou bebida, era amor e dedicação. Isso mesmo. Amor e dedicação trazidos pelas mãos manchadas da avó Lucinda que cheiravam sempre às tangerinas que avó descascava e comia ao pequeno almoço. Sempre três e sempre ao pequeno-almoço. Natália podia jurar que até os cabelos acobreados da avó emanavam a fragrância daquelas tangerinas tão pequeninas e docinhas. Certo dia, chegou à conclusão que a cor do cabelo da avó só podia ser assim por causa das tangerinas, porque todas as outras avós já tinham o cabelo branco e a avó Lucinda não. Quando fez 8 anos, a avó ofereceu-lhe um pequeno vaso com terra e sementes de tangerina algures lá dentro escondidas. Natália acreditava na avó, quando esta lhe dizia que dali ia nascer uma pequena árvore de onde iam brotar tangerinas. E como era difícil acreditar em coisas que não se veem! 

À medida que as sementes de tangerina germinavam, também o sentido de responsabilidade começava a surgir na menina que agora já não se sentia tão pequena. Natália quis saber mais coisas para além do que aprendia na Escola e passar a ter outras preocupações. Preocupações de gente grande, sabem? Ouviu alguém dizer, na televisão, que ter causas era muito importante. Defender alguma coisa, apoiar, ou lutar contra. Natália pensou nisto durante dias a fio, até que foi na sua própria sala que se apercebeu de algo que a tirava verdadeiramente do sério. Então não era que as vizinhas que visitavam a avó à terça-feira, deixavam restos de chá nas chávenas servidas com tanto carinho? E quando havia almoços de família daqueles maiores, o tio Zé era capaz de alimentar um coelho só com o que deixava no prato. Como podia isto ser? Aos adultos não diziam nada, só as crianças eram repreendidas. Não lhe parecia nada justo. Voluntariava-se para levantar a mesa e corria de imediato para o seu vaso, onde despejava os restos de água, chá ou café. No meio de todo o azar de ter de assistir a este desperdício, aquela ia ser uma planta de sorte. Mas não era suficiente, as sobras persistiam e quanto mais reparava, mais sobras via em todo o lado. Foi assim que nasceu a sua primeira grande causa: contra todos os restos.

Pó nos dedos e frio nos pés

M., 19.02.21

É preciso ser paciente até para aquecer os pés. Sim, esta atividade que não depende de mais ninguém, quando se está só, numa cama fria, em tempo de tempestades e depressões com nome de gente. Não envolve esforço nenhum, palavra nenhuma, ação alguma, senão apenas a lenta observação imaginada do sangue quente a fluir na direção dos pés. Para isso só é preciso que o coração continue a pulsar, como faz todos os dias, a todos os segundos, desde que somos gente, muito antes de termos pés, cabelo, ou dentes.

Serão estas as coisas que tomamos por garantidas? Este pulsar, que aquece a cama quando se está só numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente? Talvez, sim. Talvez a impaciência sirva para darmos valor às coisas simples. Se não fosse a impaciência (e o frio), eu não estaria para aqui a divagar. Dá-me menos trabalho ir à procura do carregador do computador, ligá-lo, empilhar duas almofadas para me encostar à parede enquanto o coloco no colo, entrar aqui e tirar o pó dos dedos que já sofrem de preguicite crónica. Dá-me menos trabalho fazer tudo isto do que aquecer os pés naturalmente, estando só, numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente.

Nunca confiei naqueles aparelhos esquisitos que se ligam à corrente e de repente já estão quentes. Também já não tenho sacos de água quente há largos anos, desde que doei o meu boneco da Rua Sésamo, que tinha uma pequena botija armazenada na barriga (era o Egas!). Não me resta então outra alternativa senão debitar umas palavras, enquanto espero e observo.

A sensação confortável de calor acaba por chegar. Bem devagar, muito devagarinho mesmo, apropriando-se das extremidades geladas que atrasam a chegada do sono e que teimam em relembrar que o inverno ainda existe e não é só lá fora.

Enquanto expulsei o inverno dos dedos dos pés, tirei o pó dos dedos das mãos.