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Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

A vizinha risonha

M., 01.03.21

Todas as manhãs é o mesmo espetáculo. Começa de mansinnho, um burburinho que irrompe o silêncio da madrugada. Ainda o relógio nem marca as seis da manhã. Pequenino, cronometrado, suave. Primeiro com o i, depois o a, por fim o u. Ao menos podia seguir uma ordem, penso eu todas as manhãs. Das primeiras vezes, pensei que fossem aqueles pombos chatos que teimam em fazer ninhos por cima das janelas, mas depressa percebi que vinha do andar de baixo. 

O burburinho aumenta. Já nem a almofada por cima da cabeça abafa aquilo. E surgem guinchos, relinchares, notas muito agudas! Não digo música porque nem sei se se pode considerar tal coisa. Na verdade são risos. Embora me custe admitir que os risos fazem com que eu acorde mal humorada todas as manhãs desde que me mudei para o novo apartamento. O espetáculo procede, desconfio até que com tachos e panelas à mistura. Que coisa tão estranha. Que vizinha tão estranha.

Cerca de uma hora mais tarde, lá me cruzo com ela no elevador. Cada dia, uma peruca diferente.  Quantas perucas é possível uma pessoa ter? Já vivo aqui há um mês e duas semanas e nunca a vi repetir nenhuma. Oh, e a roupa… um verdadeiro atentado a todos os séculos de moda. Pintas com riscas, flores com quadrados, amarelo com verde, lantejoulas azuis com veludo roxo, eu sei lá… Só de pensar nisso, fico com vontade de me enfiar no meu armário e recuperar o choque nos meus tons neutros, impecavelmente engomados e organizados. Se estivéssemos na escola, ela seria vítima de bullying, de certezinha absoluta. Mas a sua escola é outra... 97 anos de vida e uma gargalhada a rematar o final de cada frase provam que é imune a qualquer tipo de bullying.

Admito: invejo-a. A minha vizinha do quarto direito parece saída de um filme de fantasia. Enfrenta o tudo com sorrisos, ora doces, ora histéricos. Creio que também já lhe reconheci um riso de irritação, quando se indigna com alguma coisa. Nunca tinha pensado nisto, mas os sorrisos e os risinhos podem ser usados para todas as situações, são versáteis. E o facto é que àquela mulher, qual embaixatriz, ninguém os tira.

Vive sozinha num apartamento com quatro quartos, dança pelo corredor, ocupa as salas com passos e risinhos, fala com as flores, brinca com os espelhos. Não me fazia mal nenhum deixar que me contagiasse. Que alegria deve ser viver numa casa com 97 anos de histórias e quilómetros de riso! Oxalá seja à prova de paredes e tetos. Amanhã, experimento rir-me também.

Long time no see, Mr. G.

M., 27.02.21

Houve um ano em que a vida maltratou Mr.G., várias vezes, antes de Mr. G. começar a maltratar-se a si próprio, ao ponto de abandonar as suas histórias.

Mr. G. foi forçado a viver com mais amargura, mesmo quando algo de bom acontecia. Não havia maneira de fugir, nem de esquecer. Os infortúnios da vida tinham vindo para ficar e nada do que fizesse conseguia dissipá-los, era preciso aprender a viver com eles. Não era uma questão de tempo, ou era, se pensarmos que seria assim até ao fim do tempo. Mr. G. sabia que a felicidade pura, esse estado, essa sensação, esse quase-milagre, nunca mais iria voltar. Pode ser feliz ainda, sem dúvida que sim, mas... faltam-lhe as suas pessoas mais queridas. Nunca mais iria vivenciar a felicidade na sua forma pura. Partiram demasiado cedo e Mr. G. sentiu-se só, muito só. Mesmo quem estava mais longe o fez sentir só. Esqueceu-se daquilo que era. Deixou de sentir. Mais grave de tudo: esqueceu-se que era um contador de histórias. Bem sabemos que quem não consegue sentir, tão pouco consegue contar histórias.

Nesse ano de número amaldiçoado, Mr. G. teve prazeres que provavelmente não saboreou da melhor maneira (como poderia? quanto tempo demora até alguém deixar de se sentir culpado pela sua alegria, depois da tristeza?). Mas Mr. G. não deixou de ir. Andou de comboio e de avião, viu casas bonitas, prédios impressionantes e pessoas. Muitas, tantas personagens possíveis que podiam ter nascido ali e acolá. Ele próprio foi o seu personagem, em diversas situações. Podia ser uma mão cheia de criações, não fossem tão escassos os picos de inspiração. Mr. G. tinha a capacidade de ser a sua própria inspiração. Às vezes não precisava de mais nada para além dele mesmo. Num sítio qualquer, com uma vista qualquer, vestido de uma forma qualquer. Depois, viria um cheiro, um som, algo que lhe despertava ideias, aquele diálogo mental que lhe alimenta a alma e que silenciava cada vez mais.

Histórias. É difícil prever o momento certo para as contar. Todavia, um contador de histórias não se esquece assim tão facilmente. Felizmente, é o caso de Mr. G., pois ainda ontem lhe veio à memória a rapariga francesa com brincos de prata que acredita em contos de fadas. Lembrou-se também dos três truques que a senhora de meia idade com chapéu de pescador lhe segredou no jardim das rosas.

Aquele maldito ano finalmente deu lugar a um novo. Mr. G. ainda vive, ainda que com mazelas, e voltou a lembrar-se de como é bom contar histórias.

Contra todos os restos

M., 21.02.21

De todas as crueldades e injustiças do mundo, havia algo que tirava a pequena Natália do sério: os restos que ficavam nas chávenas, nos copos, nas canecas, nas tigelas, nos pratos, enfim. Por que razão as pessoas deixavam escassos mililitros ou migalhas para trás, era algo que lhe custava verdadeiramente entender.

A avó Lucinda sempre lhe ensinara que era feio deixar restos, fosse do que fosse. Era preferível pedir pouco e repetir, se necessário. Em sua casa, a rotina de servir alguém era prazerosa. Não era só comida ou bebida, era amor e dedicação. Isso mesmo. Amor e dedicação trazidos pelas mãos manchadas da avó Lucinda que cheiravam sempre às tangerinas que avó descascava e comia ao pequeno almoço. Sempre três e sempre ao pequeno-almoço. Natália podia jurar que até os cabelos acobreados da avó emanavam a fragrância daquelas tangerinas tão pequeninas e docinhas. Certo dia, chegou à conclusão que a cor do cabelo da avó só podia ser assim por causa das tangerinas, porque todas as outras avós já tinham o cabelo branco e a avó Lucinda não. Quando fez 8 anos, a avó ofereceu-lhe um pequeno vaso com terra e sementes de tangerina algures lá dentro escondidas. Natália acreditava na avó, quando esta lhe dizia que dali ia nascer uma pequena árvore de onde iam brotar tangerinas. E como era difícil acreditar em coisas que não se veem! 

À medida que as sementes de tangerina germinavam, também o sentido de responsabilidade começava a surgir na menina que agora já não se sentia tão pequena. Natália quis saber mais coisas para além do que aprendia na Escola e passar a ter outras preocupações. Preocupações de gente grande, sabem? Ouviu alguém dizer, na televisão, que ter causas era muito importante. Defender alguma coisa, apoiar, ou lutar contra. Natália pensou nisto durante dias a fio, até que foi na sua própria sala que se apercebeu de algo que a tirava verdadeiramente do sério. Então não era que as vizinhas que visitavam a avó à terça-feira, deixavam restos de chá nas chávenas servidas com tanto carinho? E quando havia almoços de família daqueles maiores, o tio Zé era capaz de alimentar um coelho só com o que deixava no prato. Como podia isto ser? Aos adultos não diziam nada, só as crianças eram repreendidas. Não lhe parecia nada justo. Voluntariava-se para levantar a mesa e corria de imediato para o seu vaso, onde despejava os restos de água, chá ou café. No meio de todo o azar de ter de assistir a este desperdício, aquela ia ser uma planta de sorte. Mas não era suficiente, as sobras persistiam e quanto mais reparava, mais sobras via em todo o lado. Foi assim que nasceu a sua primeira grande causa: contra todos os restos.

Pó nos dedos e frio nos pés

M., 19.02.21

É preciso ser paciente até para aquecer os pés. Sim, esta atividade que não depende de mais ninguém, quando se está só, numa cama fria, em tempo de tempestades e depressões com nome de gente. Não envolve esforço nenhum, palavra nenhuma, ação alguma, senão apenas a lenta observação imaginada do sangue quente a fluir na direção dos pés. Para isso só é preciso que o coração continue a pulsar, como faz todos os dias, a todos os segundos, desde que somos gente, muito antes de termos pés, cabelo, ou dentes.

Serão estas as coisas que tomamos por garantidas? Este pulsar, que aquece a cama quando se está só numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente? Talvez, sim. Talvez a impaciência sirva para darmos valor às coisas simples. Se não fosse a impaciência (e o frio), eu não estaria para aqui a divagar. Dá-me menos trabalho ir à procura do carregador do computador, ligá-lo, empilhar duas almofadas para me encostar à parede enquanto o coloco no colo, entrar aqui e tirar o pó dos dedos que já sofrem de preguicite crónica. Dá-me menos trabalho fazer tudo isto do que aquecer os pés naturalmente, estando só, numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente.

Nunca confiei naqueles aparelhos esquisitos que se ligam à corrente e de repente já estão quentes. Também já não tenho sacos de água quente há largos anos, desde que doei o meu boneco da Rua Sésamo, que tinha uma pequena botija armazenada na barriga (era o Egas!). Não me resta então outra alternativa senão debitar umas palavras, enquanto espero e observo.

A sensação confortável de calor acaba por chegar. Bem devagar, muito devagarinho mesmo, apropriando-se das extremidades geladas que atrasam a chegada do sono e que teimam em relembrar que o inverno ainda existe e não é só lá fora.

Enquanto expulsei o inverno dos dedos dos pés, tirei o pó dos dedos das mãos. 

Moderadamente viva

M., 06.09.20

Três meses depois do último post, a pessoa vem só aqui dizer que está viva. Moderadamente viva. Só quando sair de casa sem uma máscara na mão é que me vou sentir bem viva outra vez. 

Nos entretantos, já matei algumas saudades de Lisboa. Não muitas, apenas as possíveis. Já fui de férias (cá dentro), fiz muita praia e li com a ânsia de terminar todos os livros de todas as bibliotecas do mundo. Também comi gelados como se não houvesse amanhã. Depois, regressei. A minha pele já ficou ressequida do ar condicionado da empresa, que agora visito cada vez mais. Lá se foi a minha amostra de bronze.

A sensação de enclausuramento foi desaparecendo e agora dá lugar à questão "será que devo?". A pessoa anda assim num conflito moral entre a vontade e o bom-senso. Nem sempre é tão óbvio ou fácil como parece.

Fiz um vídeo das últimas férias de verão que me transportou de volta para Zagreb, Zadar, Split e Dubrovnik (querida Croácia ). Encontrei uma máquina fotográfica que julgava perdida há mais de um ano. Afastei-me de umas pessoas e aproximei-me de outras. Consegui meditar meia hora em silêncio. Pensei em criar um clube de leitura. Pensei em começar a escrever um livro. Estou a trabalhar num projeto ultra secreto e não relacionado com os temas anteriores.

Para terminar, ou talvez começar, voltei aqui à minha letra favorita.