A vizinha risonha
Todas as manhãs é o mesmo espetáculo. Começa de mansinnho, um burburinho que irrompe o silêncio da madrugada. Ainda o relógio nem marca as seis da manhã. Pequenino, cronometrado, suave. Primeiro com o i, depois o a, por fim o u. Ao menos podia seguir uma ordem, penso eu todas as manhãs. Das primeiras vezes, pensei que fossem aqueles pombos chatos que teimam em fazer ninhos por cima das janelas, mas depressa percebi que vinha do andar de baixo.
O burburinho aumenta. Já nem a almofada por cima da cabeça abafa aquilo. E surgem guinchos, relinchares, notas muito agudas! Não digo música porque nem sei se se pode considerar tal coisa. Na verdade são risos. Embora me custe admitir que os risos fazem com que eu acorde mal humorada todas as manhãs desde que me mudei para o novo apartamento. O espetáculo procede, desconfio até que com tachos e panelas à mistura. Que coisa tão estranha. Que vizinha tão estranha.
Cerca de uma hora mais tarde, lá me cruzo com ela no elevador. Cada dia, uma peruca diferente. Quantas perucas é possível uma pessoa ter? Já vivo aqui há um mês e duas semanas e nunca a vi repetir nenhuma. Oh, e a roupa… um verdadeiro atentado a todos os séculos de moda. Pintas com riscas, flores com quadrados, amarelo com verde, lantejoulas azuis com veludo roxo, eu sei lá… Só de pensar nisso, fico com vontade de me enfiar no meu armário e recuperar o choque nos meus tons neutros, impecavelmente engomados e organizados. Se estivéssemos na escola, ela seria vítima de bullying, de certezinha absoluta. Mas a sua escola é outra... 97 anos de vida e uma gargalhada a rematar o final de cada frase provam que é imune a qualquer tipo de bullying.
Admito: invejo-a. A minha vizinha do quarto direito parece saída de um filme de fantasia. Enfrenta o tudo com sorrisos, ora doces, ora histéricos. Creio que também já lhe reconheci um riso de irritação, quando se indigna com alguma coisa. Nunca tinha pensado nisto, mas os sorrisos e os risinhos podem ser usados para todas as situações, são versáteis. E o facto é que àquela mulher, qual embaixatriz, ninguém os tira.
Vive sozinha num apartamento com quatro quartos, dança pelo corredor, ocupa as salas com passos e risinhos, fala com as flores, brinca com os espelhos. Não me fazia mal nenhum deixar que me contagiasse. Que alegria deve ser viver numa casa com 97 anos de histórias e quilómetros de riso! Oxalá seja à prova de paredes e tetos. Amanhã, experimento rir-me também.