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Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Opinião: A Cidade das Mulheres - Elizabeth Gilbert

M., 13.03.21

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Lembrei-me de partilhar este livro, por ocasião do dia da Mulher. Foi das primeiras leituras de 2021 e apesar de ter ficado aquém dos outros que li da autora (Comer, Orar Amar e Big Magic), a verdade é que conseguiu prender a minha atenção e que o li muito rapidamente. 

A Cidade das Mulheres traz-nos a história de Vivian Morris, na voz da própria, que faz uma grande retroespetiva à sua vida. Começa no momento em que, aos 19 anos, na década de 1940, é enfiada num comboio com destino a Nova Iorque para ir viver com a sua tia Peg. Vivian, personagem principal e narradora, está sempre a relatar a sua história para alguém, naquilo que parece uma carta (e que exteeeensa carta!). Só nas últimas páginas é que vamos descobrir quem é esta "pessoa-mistério". 

Vivian chega à Grand Central Station após ser expulsa do colégio privado, de casa dos pais e de toda uma vida protegida com a qual não se identificava. A tia Peg representava o oposto de tudo o que conhecia, uma mulher excêntrica, proprietária de um teatro decadente.  Previsivelmente, a jovem deslumbra-se pelo mundo do teatro daquela época. O livro tem descrições tão visuais que nos convidam a ficar na fila da frente dos espectáculos do Lily Playhouse, com acesso exclusivo aos bastidores e aos interiores das personagens, na maioria mulheres, com destaque para as coristas que deslumbravam qualquer um (e qualquer uma).

Captura de ecrã 2021-03-13, às 20.04.12.pngFonte: https://www.flickr.com/photos/hollywoodplace/6551166369/in/photostream/

É curioso perceber o papel das mulheres no meio artístico, alheias à submissão e até à Guerra que ainda pouco se fazia sentir. Talvez não estejamos habituados a histórias dos anos 40 e 50 com mulheres que sendo normais, isto é, não tendo conquistado nenhum feito histórico ou revolucionário, eram naturalmente irreverentes. Vivian é uma personagem fictícia, mas estas mulheres existiram mesmo, a autora chegou a entrevistar algumas durante o trabalho de pesquisa.

É por isso que, para mim, faz todo o sentido trazer um livro que não seja sonante como a biografia da Frida Kahlo ou da Oprah, porque isso seria (mais uma vez) obedecer ao estereótipo da mulher que deve ser destacada em dias comemorativos. 

Não existe uma única definição de mulher. Esta é a mensagem mais bonita e mais verdadeira a retirar desta história. Aquilo que para algumas pessoas é um escândalo, pode ser um modo de vida para outras. Aquilo que é socialmente esperado, é o pior pesadelo de tantas outras. O que está errado para a maioria, trás felicidade a alguém. Que haja liberdade e respeito perante qualquer uma das nossas escolhas, desde uma simples peça de roupa ou corte de cabelo, à profissão exercida ou aos interesses. Sem estigmas sociais. Sem olhares de julgamento. Sem comentários desnecessários. Isto é tudo o que queremos e precisamos de conquistar.

A Vivian é um exemplo dessa liberdade, do fora do comum, do mal visto. Só por isso, vale a pena conhecê-la e fazer esta viagem.

Podem assistir aqui a uma entrevista informal sobre o livro, com a própria Elizabeth Gilbert.

Espero que gostem! E que todos os dias sejam nossos, queridas Mulheres!

A (minha) luz ao fundo do túnel

M., 12.03.21

Pois é, chegámos a Março de 2021. Já convivemos com o bicho há doze meses, cinquenta e duas semanas, trezentos e sessenta e cinco dias. Não estivemos confinados durante estes meses na íntegra, mas se disser que já nem nos lembramos das pequenas brechas de liberdade que houve, acho que falo por todos, não é?

Posto isto, o que tenho para vos dizer? Nada de novo. Qualquer coisa que eu diga aqui não será mais do que uma repetição. Afinal, o que mais tem acontecido neste ano é mesmo isso: a repetição. Os dias da semana arrastam-se em modo fotocópia. Os fins-de-semana oscilam entre o sentimento de sorte por ter jardins bonitos perto de casa e a frustração de não ver o mar há meses. Mesmo essa oscilação torna-se ela própria numa repetição. As séries e filmes vão se esgotando, os livros vão-se empilhando, nas estantes e fora delas. Nunca comprei tantos livros online na minha vida. É indubitavelmente mais prático? Sim. Substitui a ida às livrarias? Nem pensar.

A iniciativa para convencer pessoas a fazer alguma atividade tem sido a minha luta. Parece que se esqueceram que caminhar na rua pode ser uma forma segura de conviver. Por muito que passe várias horas por dia agarrada ao WhatsApp, tornei-me na maior defensora dos passeios higiénicos, embora não simpatize nadinha com a combinação das palavras passeio e higiénico. Olhem, é o que temos.

Entretanto, eu já avisto uma luzinha lá ao fundo, já, sim senhor! Dizem que na próxima semana abrem as livrarias e que no dia cinco do mês que vem, vamos poder sentar o real traseiro e beberricar um café ou qualquer outra coisinha, ao ar livre. Esplanadas. Ainda se lembram?

Fiquei contente com esta notícia, não desfazendo a reabertura das creches e escolas (pais, mães, professores: a minha solidariedade para convosco!), nem os cabeleireiros que já mereciam estar abertos há tanto tempo, assim como os pequenos comerciantes que estão por um fio e claro, todo o setor da restauração, provavelmente o mais prejudicado. Há muitos negócios a passar dificuldades, e todos os negócios são feitos de pessoas de carne e osso, com fome e contas para pagar, como qualquer um de nós.

Deixa-me triste observar os poucos apoios que existem e assistir ao desespero dos outros no conforto da minha casa, afinal eu pertenço à burguesia do teletrabalho, segundo dizem. Não quero que pensem que sou indiferente ao que se passa, muito pelo contrário. Mas se eu puder pensar nestas questões numa esplanada com uma vista agradável, ao sol, enquanto bebo uma Somersby e troco palavras com pessoas que estão realmente à minha frente, serei menos uma na lista de espera para o Júlio de Matos.

Portanto, a partir desse dia, se não houver retrocessos inesperados, saberão onde me encontrar.

Para Lisboa, com saudade

C(o)rónicas de Quarentena #5

M., 03.06.20

Começou pelas pessoas. Na hierarquia de importâncias, as pessoas têm de vir primeiro e assim foi. Embora umas mais do que outras, as pessoas foram marcando presença nesta temporada atípica. 

Então e a cidade, a minha cidade? Como se comunica com uma cidade sem sair de casa?

Não se comunica. A cidade não tem número para telefonar, nem uma só morada para onde escrever. A cidade não faz vídeochamadas. Quanto muito, vamos vendo, à distância, pedaços que alguém fotografou ou vídeos filmados por drones. Não é a mesma coisa.

Não é sentir as pedras da calçada portuguesa debaixo das solas dos sapatos, nem o vento que teima em levantar vestidos. Não é sentir o cheiro do pão quente ou das castanhas assadas. Não é treinar a arte do "desvianço" quando o Chiado tem mais pessoas do que espaço. Não é ver o sol a pôr-se em Belém e as luzes da ponte a acender como por magia. Não é ficar com os gémeos doridos só para subir ao jardim do Torel. Não é ficar a observar os cães no "lago" do Linha d'água e os patos na Gulbenkian. Não é descer o Parque Eduardo VII e a Avenida da Liberdade só porque sim. Não é vaguear por ruas e becos da Mouraria em busca de outros tempos. Não é ouvir música no Jardim da Estrela e comer panquecas em Campo de Ourique. Não é passar a tarde a ver barcos à vela na Ribeira das Naus. Não é jantar num clandestino do Martim Moniz e subir até à Senhora do Monte para ter a vista mais bonita de todas. Não é passar tardes de chuva em cafés acolhedores ou ficar à sombra da árvore centenária do Príncipe Real em dias solarengos. Não é passar noites inteiras nas ruas do Bairro Alto. Não é festejar os Santos Populares em modo "sardinha enlatada" na Rua da Bica e na Vila Berta. Não é fugir dos pombos no Rossio e jantar numa esplanada na Praça das Flores. Não é beber uma ginginha a caminho do Largo do Carmo, antes de ouvir alguém a tocar guitarra no Miradouro de São Pedro de Alcântara.

Estas são algumas das coisas de que mais gosto e que mais falta me fazem. Para além daquelas que ainda vou descobrir, sei disso, porque a lista nunca termina. Lisboa será sempre a minha cidade favorita e se tivesse caixa de correio era isto que lhe escrevia.

Já passaram cinco semanas

C(o)rónicas de Quarentena #4

M., 17.04.20

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Lembram-se quando vos contei aqui que estava em casa há duas semanas? 

Já se passaram cinco. Podia dizer-vos que estou transformada numa pessoa melhor e que estou altamente produtiva e criativa. Afinal não é isso que as frases bonitas que vemos por aí pregam todos os dias? Eu adoro ser positiva e esperançosa mas antes disso gosto de ser verdadeira e não tenho acordado todas as manhãs a sentir-me espetacular, não senhora. 

Vamos aos updates.

Toda a rotina de desinfectar está mais fácil, mais automática. É que para além das minhas mãozinhas, tenho 4 patas caninas para limpar várias vezes ao dia. Ou seja, cada vez que entro em casa, preciso de desinfectar imediatamente não duas, mas seis patas. O meu cão, apesar de continuar com um ar muito confuso, lá vai colaborando.

Ir ao supermercado, apesar de continuar a ser um filme, é a coisa mais próxima de uma vida normal fora de casa que tenho, por isso já tolero melhor. Quase me atrevo a dizer que gosto.

Aprendi a desligar da maioria das notícias e principalmente dos números. Sabem que em Portugal morrem por mês 400 pessoas com pneumonia? Pois. A falta de conteúdo e excesso de alarmismo faz com que fiquemos impressionados com números que já existiam antes desta pandemia. Pesquisem sobre isto e garanto-vos que vão ficar supreendidos. Não estou a desvalorizar a situação, só que pessoalmente dispenso ser bombardeada com isto a toda a hora, os primeiros 10 minutos do telejornal da noite são suficientes para me manter informada.

Tenho meditado e sinto-me tranquila, de um modo geral. Não significa que consiga ver uma temporada de Casa de Papel de enfiada (vi em 4 dias). Continuo a ter bicho carpinteiro que me impede de fazer longas maratonas em frente a um ecrã.

Conquistas? Também há!

Tenho cozinhado mais. Já fiz um bolo tão bom que foi dividido em pequenos quadradinhos para durar o máximo possível. Ainda durou uma semana, palmas para mim!

Estou a gostar mais de plantas. Pouco ou nada ligava às que tenho na minha varanda, mas agora começo a apreciar e gosto de acompanhar o seu crescimento. Tenho um vaso de orquídeas que estão quase, quase a nascer e é mesmo giro ver a evolução diária.

Voltei a pegar na minha velha amiga guitarra, de quem tinha milhões de saudades. Toquei até ficar com calos nos dedos da mão esquerda (entendedores entenderão).

Li mais um livro em inglês, algo que queria fazer com mais frequência este ano. Talvez escreva sobre ele, em breve.

Tenho pairado aqui pelo Letra Éme mais vezes que nos últimos seis meses. 

Agora, as partes menos boas...

Abril é o meu mês. É o mês dos aniversários, das festas, das surpresas, do convívio com as pessoas. Por isso custa estar longe, claro que custa, era mau sinal se não custasse.

Sinto que as videochamadas são sempre curtas demais, tenho saudades de falar com as pessoas sem horas marcadas e sem perguntar 39 vezes se me vêem/ouvem bem. Enfim. Todos fazemos o nosso possível e fico feliz por continuar a ter quem ature as minhas parvoíces dia após dia, semana após semana.

Não é possível estarmos super felizes e produtivos a toda a hora. Haverá momentos em que um mês parecem dez e parece que nada acontece. Haverá momentos em que somos assombrados pela impotência do agora e pela incerteza do futuro. Gosto de pensar que enquanto houver aspetos positivos a somar à equação, valerá tudo a pena, mas há dias em que é verdadeiramente difícil e assustador.

Identificam-se com alguma destas coisas? Como está a ser, desse lado?

Desejo-vos a continuação de uma quarentena o mais sã possível, com todos os altos e todos baixos, porque é importante aceitarmos esta dualidade. Obrigada também a quem tem vindo aqui deixar os seus comentários, são sempre bem-vindos!

Crochet pandémico

C(o)rónicas de Quarentena #3

M., 14.04.20

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A minha mãe decidiu que queria fazer crochet. 

Já não fazia há muito tempo, tem saudades de algo que não a obrigue a ficar agarrada a um ecrã (como a compreendo!) e, vai na volta, começou a remexer em tudo quanto são caixas e caixinhas, à procura do material. Encontrou as agulhas e um pequeno novelo branco. À partida servia para treinar.

Acontece que a minha mãe é uma pessoa extremamente jeitosa em tudo o que envolve trabalhos manuais, o que me faz questionar se serei adotada, porque tal jeitinho não chegou aqui a estes genes. Portanto, rapidamente começou a esgotar as coisas que podia fazer só com um novelo branco e queria mais. Mais cores, mais diversidade, mais opções.

Foi então que começou a pedir-me para lhe comprar novelos de lã. Eu no primeiro dia nem liguei, respondi algo do género "sim, está bem, vou já a correr comprar-te novelos de lã no meio desta pandemia". No dia seguinte, a mesma conversa. "Mãe, está tudo fechado" informava eu. Ela não insistia mais e continuavavamos ambas o que estavamos a fazer. Mas isto estava longe de acabar. No dia a seguir, voltou a pedir-me e eu voltei a explicar que como as lojas estão fechadas, o melhor era comprar online. Recebi um encolher de ombros em troca. Só que não era uma desistência. Porque, segundo ela, de certeza que na loja chinesa havia. "Há aquela mercearia chinesa que vende fruta e legumes e lá ao fundo tem coisas para a casa, lá de certeza que consegues comprar, vá lá, vai-me lá comprar que eu estou cheia de vontade de fazer isto".

Pronto. Foi a gota de água. Peguei nela e fomos as duas dar uma volta de carro aqui pelo bairro, para que a Teimosa Mor cá de casa pudesse ver e acreditar que quando afirmo que está tudo fechado, não estou mesmo a exagerar. Avistavam-se pessoas nas filas para as mercearias e farmácias. De resto, tudo fechado, como eu andava há dias a tentar explicar. É triste. Para quem não punha os pés na rua há várias semanas, foi um choque grande. Tentei remediar a situação oferecendo-me para a ajudar a pesquisar online e encomendar.

Meus amigos, o que eu não sabia é que há todo um Universo do Crochet! Uma pessoa entra num site, e aparecem 53 nomes, que agora percebi que são marcas, para que possamos escolher. Esqueçam lá definições de lã fininha ou grossa, vocês têm de decidir é entre a Katia, a Nikita, a Merinho, a Charminho... o que é isto? Eu não quero adotar caniches, quero só comprar novelos de lã...!

Pior do que este primeiro embate, foi depois ver o preço de cada "caganita" de 50 gramas. Pois que a senhora minha mãe continuava a teimar que no chinês é muito mais barato. "Podes sempre mandar vir da China, daqui a um mês, com sorte, devem chegar" rematei.

Resumindo e baralhando: continuamos sem novelos nem perspetivas de os ter porque 1) as lojas estão fechadas, 2) as encomendas demoram muito tempo a chegar, 3) as que chegam em tempo razoável são demasiado caras e 4) uma pessoa que é leiga no assunto tem medo de arriscar e deitar dinheiro ao lixo.

De modo que estou de mãos e pés atados com fios de lã invisíveis.

Caramba... Nunca pensei que uma atividade tão adorável como o crochet me desse estas dores de cabeça!