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Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

Letra Éme

uma série de devaneios meticulosamente desordenados

A (minha) luz ao fundo do túnel

M., 12.03.21

Pois é, chegámos a Março de 2021. Já convivemos com o bicho há doze meses, cinquenta e duas semanas, trezentos e sessenta e cinco dias. Não estivemos confinados durante estes meses na íntegra, mas se disser que já nem nos lembramos das pequenas brechas de liberdade que houve, acho que falo por todos, não é?

Posto isto, o que tenho para vos dizer? Nada de novo. Qualquer coisa que eu diga aqui não será mais do que uma repetição. Afinal, o que mais tem acontecido neste ano é mesmo isso: a repetição. Os dias da semana arrastam-se em modo fotocópia. Os fins-de-semana oscilam entre o sentimento de sorte por ter jardins bonitos perto de casa e a frustração de não ver o mar há meses. Mesmo essa oscilação torna-se ela própria numa repetição. As séries e filmes vão se esgotando, os livros vão-se empilhando, nas estantes e fora delas. Nunca comprei tantos livros online na minha vida. É indubitavelmente mais prático? Sim. Substitui a ida às livrarias? Nem pensar.

A iniciativa para convencer pessoas a fazer alguma atividade tem sido a minha luta. Parece que se esqueceram que caminhar na rua pode ser uma forma segura de conviver. Por muito que passe várias horas por dia agarrada ao WhatsApp, tornei-me na maior defensora dos passeios higiénicos, embora não simpatize nadinha com a combinação das palavras passeio e higiénico. Olhem, é o que temos.

Entretanto, eu já avisto uma luzinha lá ao fundo, já, sim senhor! Dizem que na próxima semana abrem as livrarias e que no dia cinco do mês que vem, vamos poder sentar o real traseiro e beberricar um café ou qualquer outra coisinha, ao ar livre. Esplanadas. Ainda se lembram?

Fiquei contente com esta notícia, não desfazendo a reabertura das creches e escolas (pais, mães, professores: a minha solidariedade para convosco!), nem os cabeleireiros que já mereciam estar abertos há tanto tempo, assim como os pequenos comerciantes que estão por um fio e claro, todo o setor da restauração, provavelmente o mais prejudicado. Há muitos negócios a passar dificuldades, e todos os negócios são feitos de pessoas de carne e osso, com fome e contas para pagar, como qualquer um de nós.

Deixa-me triste observar os poucos apoios que existem e assistir ao desespero dos outros no conforto da minha casa, afinal eu pertenço à burguesia do teletrabalho, segundo dizem. Não quero que pensem que sou indiferente ao que se passa, muito pelo contrário. Mas se eu puder pensar nestas questões numa esplanada com uma vista agradável, ao sol, enquanto bebo uma Somersby e troco palavras com pessoas que estão realmente à minha frente, serei menos uma na lista de espera para o Júlio de Matos.

Portanto, a partir desse dia, se não houver retrocessos inesperados, saberão onde me encontrar.

Pó nos dedos e frio nos pés

M., 19.02.21

É preciso ser paciente até para aquecer os pés. Sim, esta atividade que não depende de mais ninguém, quando se está só, numa cama fria, em tempo de tempestades e depressões com nome de gente. Não envolve esforço nenhum, palavra nenhuma, ação alguma, senão apenas a lenta observação imaginada do sangue quente a fluir na direção dos pés. Para isso só é preciso que o coração continue a pulsar, como faz todos os dias, a todos os segundos, desde que somos gente, muito antes de termos pés, cabelo, ou dentes.

Serão estas as coisas que tomamos por garantidas? Este pulsar, que aquece a cama quando se está só numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente? Talvez, sim. Talvez a impaciência sirva para darmos valor às coisas simples. Se não fosse a impaciência (e o frio), eu não estaria para aqui a divagar. Dá-me menos trabalho ir à procura do carregador do computador, ligá-lo, empilhar duas almofadas para me encostar à parede enquanto o coloco no colo, entrar aqui e tirar o pó dos dedos que já sofrem de preguicite crónica. Dá-me menos trabalho fazer tudo isto do que aquecer os pés naturalmente, estando só, numa cama fria, em noite de tempestades e depressões com nome de gente.

Nunca confiei naqueles aparelhos esquisitos que se ligam à corrente e de repente já estão quentes. Também já não tenho sacos de água quente há largos anos, desde que doei o meu boneco da Rua Sésamo, que tinha uma pequena botija armazenada na barriga (era o Egas!). Não me resta então outra alternativa senão debitar umas palavras, enquanto espero e observo.

A sensação confortável de calor acaba por chegar. Bem devagar, muito devagarinho mesmo, apropriando-se das extremidades geladas que atrasam a chegada do sono e que teimam em relembrar que o inverno ainda existe e não é só lá fora.

Enquanto expulsei o inverno dos dedos dos pés, tirei o pó dos dedos das mãos. 

Moderadamente viva

M., 06.09.20

Três meses depois do último post, a pessoa vem só aqui dizer que está viva. Moderadamente viva. Só quando sair de casa sem uma máscara na mão é que me vou sentir bem viva outra vez. 

Nos entretantos, já matei algumas saudades de Lisboa. Não muitas, apenas as possíveis. Já fui de férias (cá dentro), fiz muita praia e li com a ânsia de terminar todos os livros de todas as bibliotecas do mundo. Também comi gelados como se não houvesse amanhã. Depois, regressei. A minha pele já ficou ressequida do ar condicionado da empresa, que agora visito cada vez mais. Lá se foi a minha amostra de bronze.

A sensação de enclausuramento foi desaparecendo e agora dá lugar à questão "será que devo?". A pessoa anda assim num conflito moral entre a vontade e o bom-senso. Nem sempre é tão óbvio ou fácil como parece.

Fiz um vídeo das últimas férias de verão que me transportou de volta para Zagreb, Zadar, Split e Dubrovnik (querida Croácia ). Encontrei uma máquina fotográfica que julgava perdida há mais de um ano. Afastei-me de umas pessoas e aproximei-me de outras. Consegui meditar meia hora em silêncio. Pensei em criar um clube de leitura. Pensei em começar a escrever um livro. Estou a trabalhar num projeto ultra secreto e não relacionado com os temas anteriores.

Para terminar, ou talvez começar, voltei aqui à minha letra favorita.

Para Lisboa, com saudade

C(o)rónicas de Quarentena #5

M., 03.06.20

Começou pelas pessoas. Na hierarquia de importâncias, as pessoas têm de vir primeiro e assim foi. Embora umas mais do que outras, as pessoas foram marcando presença nesta temporada atípica. 

Então e a cidade, a minha cidade? Como se comunica com uma cidade sem sair de casa?

Não se comunica. A cidade não tem número para telefonar, nem uma só morada para onde escrever. A cidade não faz vídeochamadas. Quanto muito, vamos vendo, à distância, pedaços que alguém fotografou ou vídeos filmados por drones. Não é a mesma coisa.

Não é sentir as pedras da calçada portuguesa debaixo das solas dos sapatos, nem o vento que teima em levantar vestidos. Não é sentir o cheiro do pão quente ou das castanhas assadas. Não é treinar a arte do "desvianço" quando o Chiado tem mais pessoas do que espaço. Não é ver o sol a pôr-se em Belém e as luzes da ponte a acender como por magia. Não é ficar com os gémeos doridos só para subir ao jardim do Torel. Não é ficar a observar os cães no "lago" do Linha d'água e os patos na Gulbenkian. Não é descer o Parque Eduardo VII e a Avenida da Liberdade só porque sim. Não é vaguear por ruas e becos da Mouraria em busca de outros tempos. Não é ouvir música no Jardim da Estrela e comer panquecas em Campo de Ourique. Não é passar a tarde a ver barcos à vela na Ribeira das Naus. Não é jantar num clandestino do Martim Moniz e subir até à Senhora do Monte para ter a vista mais bonita de todas. Não é passar tardes de chuva em cafés acolhedores ou ficar à sombra da árvore centenária do Príncipe Real em dias solarengos. Não é passar noites inteiras nas ruas do Bairro Alto. Não é festejar os Santos Populares em modo "sardinha enlatada" na Rua da Bica e na Vila Berta. Não é fugir dos pombos no Rossio e jantar numa esplanada na Praça das Flores. Não é beber uma ginginha a caminho do Largo do Carmo, antes de ouvir alguém a tocar guitarra no Miradouro de São Pedro de Alcântara.

Estas são algumas das coisas de que mais gosto e que mais falta me fazem. Para além daquelas que ainda vou descobrir, sei disso, porque a lista nunca termina. Lisboa será sempre a minha cidade favorita e se tivesse caixa de correio era isto que lhe escrevia.

Já passaram cinco semanas

C(o)rónicas de Quarentena #4

M., 17.04.20

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Lembram-se quando vos contei aqui que estava em casa há duas semanas? 

Já se passaram cinco. Podia dizer-vos que estou transformada numa pessoa melhor e que estou altamente produtiva e criativa. Afinal não é isso que as frases bonitas que vemos por aí pregam todos os dias? Eu adoro ser positiva e esperançosa mas antes disso gosto de ser verdadeira e não tenho acordado todas as manhãs a sentir-me espetacular, não senhora. 

Vamos aos updates.

Toda a rotina de desinfectar está mais fácil, mais automática. É que para além das minhas mãozinhas, tenho 4 patas caninas para limpar várias vezes ao dia. Ou seja, cada vez que entro em casa, preciso de desinfectar imediatamente não duas, mas seis patas. O meu cão, apesar de continuar com um ar muito confuso, lá vai colaborando.

Ir ao supermercado, apesar de continuar a ser um filme, é a coisa mais próxima de uma vida normal fora de casa que tenho, por isso já tolero melhor. Quase me atrevo a dizer que gosto.

Aprendi a desligar da maioria das notícias e principalmente dos números. Sabem que em Portugal morrem por mês 400 pessoas com pneumonia? Pois. A falta de conteúdo e excesso de alarmismo faz com que fiquemos impressionados com números que já existiam antes desta pandemia. Pesquisem sobre isto e garanto-vos que vão ficar supreendidos. Não estou a desvalorizar a situação, só que pessoalmente dispenso ser bombardeada com isto a toda a hora, os primeiros 10 minutos do telejornal da noite são suficientes para me manter informada.

Tenho meditado e sinto-me tranquila, de um modo geral. Não significa que consiga ver uma temporada de Casa de Papel de enfiada (vi em 4 dias). Continuo a ter bicho carpinteiro que me impede de fazer longas maratonas em frente a um ecrã.

Conquistas? Também há!

Tenho cozinhado mais. Já fiz um bolo tão bom que foi dividido em pequenos quadradinhos para durar o máximo possível. Ainda durou uma semana, palmas para mim!

Estou a gostar mais de plantas. Pouco ou nada ligava às que tenho na minha varanda, mas agora começo a apreciar e gosto de acompanhar o seu crescimento. Tenho um vaso de orquídeas que estão quase, quase a nascer e é mesmo giro ver a evolução diária.

Voltei a pegar na minha velha amiga guitarra, de quem tinha milhões de saudades. Toquei até ficar com calos nos dedos da mão esquerda (entendedores entenderão).

Li mais um livro em inglês, algo que queria fazer com mais frequência este ano. Talvez escreva sobre ele, em breve.

Tenho pairado aqui pelo Letra Éme mais vezes que nos últimos seis meses. 

Agora, as partes menos boas...

Abril é o meu mês. É o mês dos aniversários, das festas, das surpresas, do convívio com as pessoas. Por isso custa estar longe, claro que custa, era mau sinal se não custasse.

Sinto que as videochamadas são sempre curtas demais, tenho saudades de falar com as pessoas sem horas marcadas e sem perguntar 39 vezes se me vêem/ouvem bem. Enfim. Todos fazemos o nosso possível e fico feliz por continuar a ter quem ature as minhas parvoíces dia após dia, semana após semana.

Não é possível estarmos super felizes e produtivos a toda a hora. Haverá momentos em que um mês parecem dez e parece que nada acontece. Haverá momentos em que somos assombrados pela impotência do agora e pela incerteza do futuro. Gosto de pensar que enquanto houver aspetos positivos a somar à equação, valerá tudo a pena, mas há dias em que é verdadeiramente difícil e assustador.

Identificam-se com alguma destas coisas? Como está a ser, desse lado?

Desejo-vos a continuação de uma quarentena o mais sã possível, com todos os altos e todos baixos, porque é importante aceitarmos esta dualidade. Obrigada também a quem tem vindo aqui deixar os seus comentários, são sempre bem-vindos!