Devíamos ser mais como os peixes
Em tempos de quarentena, quero partilhar um belíssimo excerto de um dos últimos livros que li: a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe.
Valter Hugo Mãe é um dos meus escritores favoritos já há alguns anos, pela forma realisticamente poética como se expressa sobre aquilo que é a vida, o amor e o sofrimento. Neste livro, conhecemos o senhor Silva que depois de ficar viúvo, aos 84 anos, vai viver para um lar. Durante este período, para além de pensar na sua vida e de fazer novas amizades, passa por alguns momentos introspetivos, como é natural. Houve um destes momentos que me marcou particularmente e que não podia ser mais apropriado para a situação que estamos todos a viver:
"sabes que os peixes têm uma memória de segundos. aqueles peixes bonitos que vês dentro dos aquários pequenos, sabes que têm uma memória de uns segundos, três segundos, assim. é por isso que não ficam loucos por dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma exploração fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes, a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação."
Fabuloso, não é?
Cada dia que passa dá-nos a oportunidade de encarar tudo de uma forma diferente, nova, inesperada se quisermos. Isto significa que temos também oportunidade de nos deixarmos deslumbrar com coisas simples às quais deixamos de dar importância na nossa correria habitual. Como aquela plantinha que temos há semanas e que finalmente está a crescer ou aquela receita da nossa avó que saiu perfeita.
E a felicidade de partilhar estas vivências tão simples com os nossos amigos e família, como se fosse algo novo e absolutamente excitante?
Ao princípio tive medo que as conversas ficassem desinteressantes (ai, ai, Mariana... como se aquilo que nos dá interesse fossem as coisas lá fora!). Custa-me um bocado admitir isto, porque é um perfeito disparate. O que nos torna interessantes é o que cultivamos "aqui" dentro e a nossa capacidade de nos reinventarmos, de nos adaptarmos às circunstâncias. É certo que há várias maneiras de viver esta fase, podemos escolher ficar a vegetar e a fazer sempre o mesmo, ou podemos escolher ser como os peixes.
É importante sermos como os peixes e agradecer a sorte que temos, mesmo quando estamos confinados aos nossos "aquários". São estes aquários que nos protegem e que nos permitem continuar a viver, ainda que de uma forma diferente.
Por isso, queridas pessoas: aproveitem este tempo, deixem-se surpreender, usem e abusem dessa criatividade e, claro, leiam muito!